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Lobão a mil

O público presente no São Carlos Clube na noite do dia 13 de julho parecia estar mais para Bossa Nova que para Rock n’ Roll. As bandas lideradas por Marcos Carreri e Rodrigo Lanceloti (que se diga, excelentes), tiveram que pedir várias vezes para o público ser mais… rock.

Um pouco depois das 11 da noite, Lobão e os Eremitas da Montanha subiram no palco e num passe de mágica a Bossa deixou de ser Bossa e virou Rock n’ Roll. Com um sobretudo preto, cabelo comprido solto, barba branca, Lobão cantou “Eu tô ficando velho, cada vez mais doido varrido, roqueiro brasileiro, sempre teve cara de bandido”. Era o velho Lobo arrebentando com “Ôrra meu”, que Rita Lee gravou em 1980. Em seguida “Vítima do amor”, da Blitz, que Lobão gravou como baterista. E que tal uma do próprio Lobão? Antes de “Canos silenciosos”, o músico conta que tinha gravado a música para o filme do amigo Casagrande. Mais do Lobão, a clássica “Decadence avec elegance”. O rock estava só começando.

Lobão regravou vários clássicos dos anos 80, que até então recebiam porrada do velho Lobo. Que tal um desfile dessas regravações? Pra começar “Toda forma de poder”, dos Engenheiros do Hawaii. Em seguida “Dias de luta”, do Ira!, e “Eu não matei Joana D’Arc”, do Camisa de Vênus. Pausa para o que Lobão chamou de sua letra mais canalha, fruta de uma transgressão sexual, lê-se traição mesmo, e cantou a balada lobônica “Por tudo que for”. Voltando às regravações: “Eu sei”, da Legião Urbana, “Primeiro erros”, do Kiko Zambianchi, que Lobão opinou que deveria ter sido mais valorizado no cenário musical. Mais Ira! com “Núcleo base” e “Lanterna dos afogados”, dos Paralamas do Sucesso, cujo cantor, Herbert Vianna, Lobão cacetou (no passado mesmo) tanto por aí.

“Vida bandida”, composição de Lobão, que Cazuza se apropriou com tanta naturalidade que muitos até hoje pensam que é dele. Depois é a vez de Lobão se apropriar de Cazuza com “O tempo não para”. Mais uma balada lobônica, a “Essa noite não” e um “Help”, dos Beatles cantada como fosse um lamento. Um brinde ao rock n’ roll e daqui pra frente é tudo Lobão: “Vou te levar”, “Noite e dia”, “Me chama” e “Rádio blá”, em que Lobão improvisa com um discurso político criticando o filho do presidente, o presidente que quer “nos foder” (nas palavras do Lobão). E pra fechar a noite “Corações psicodélicos”. As luzes do palco se apagam. A galera parecia ainda anestesiada com o que acabara de ver e ouvir. Lobão, aos quase 62 anos, mostrou que continua a mais de mil.

Entrevista
Depois do show, o blog Rock 80 Brasil bateu um papo com Lobão, que falou do trabalho de regravar as músicas dos anos 80, dos 10 anos do livro “50 anos a mil” e da tentativa de unir o rock brasileiro. Confira a íntegra da entrevista a seguir:

Blog Rock 80 Brasil – Como foi o processo e o estudo que resultaram na regravação de músicas do rock dos anos 80?
Lobão – Foi um trabalho de quase apropriação autoral. Ao mesmo tempo tinha uma apropriação autoral. Não sou um intérprete, não consigo distanciar da minha maneira de ser, não sou um cantor de cover. A gente fez um projeto baseado em uma banda, os Eremitas da Montanha, o próprio nome quer dar uma conotação de uma coisa de uma antítese tropicalista. Eu queria fazer um contraponto do “O Rigor e a Misericórdia”, que foi um disco que fiz sozinho. Este, o “Antologia politicamente incorreta dos anos 80 pelo rock”, foi um disco de banda. A ideia foi fazer uma homenagem ao rock dos anos 80 com um nível de timbre de rock que nenhum de nós conseguiu fazer naquela época, porque não era possível. Os diretores das gravadoras não deixavam, eles queriam algo iê iê iê. Também foi resultado de um livro que foi uma catarse. Comecei a escrevê-lo com um intuito e no meio do caminho eu joguei o intuito fora. Comecei a ouvir as músicas, me dissociando da qualidade ruim das gravações e comecei a em emocionar muito. Eu nunca tinha ouvido o Cazuza. Eu dizia a ele que eu não ia ouvir, mesmo as composições que fiz com ele. “Mal Nenhum”, por exemplo, a primeira vez que ouvi foi ali. Ouvi as coisas que eu gravei, como o disco da Blitz, do Ritchie, “Cena de cinema” (o primeiro álbum solo de Lobão). Pensei que eu fosse detonar tudo aquilo. Achava horrível a qualidade, mas as músicas eram muito boas. Quando eu ouvi “Cidade em Chamas”, dos Engenheiros do Hawaii, fiquei emocionadíssimo. Detonei esses caras o tempo todo, mas tem uma letra incrível.

Blog Rock 80 Brasil – Você nunca tinha ouvido essa música?
Lobão – Eu nunca tinha escutado nada. Nem os meus discos eu ouvia. Eu tinha vergonha por causa da sonoridade. A gente se sentia impotente em fazer rock no Brasil. Eu não sabia mexer na produção. Passei anos e anos aprendendo, aí eu passei a ser o produtor. Essa foi minha vontade e fiz este disco duplo vinil, com luxo, com capricho total. Levamos dois anos pra fazer tudo. Mas eu estou muito orgulhoso. E como um instrumentista, principalmente um baterista, você tem a sensação de pertencer a um grupo. Como tive uma história de ter que virar um artista solo, o que eu não queria, fazer o disco “O Rigor e a Misericórdia” e depois ter a oportunidade de ter uma banda e fazer isso em banda, de ter um baterista que não era eu, foi maravilhoso.

Blog Rock 80 Brasil – Você acabou de lançar um single, o “Com a graça de Deus”. E agora quais são os próximos passos?
Lobão – Eu estou muito fértil, compondo muito. Mas o que estou me focando agora é na feitura em complementar os 10 anos do livros “50 anos a mil”, que está tomando um tempo. Eu passo três, quatro horas da manhã na bicicleta ergométrica e escrevendo. Eu falei: eu vou ficar magro, terminar o livro magro e engordar o livro. Nesse período, que já faz um mês, escrevi 40 páginas. Eu tenho que terminar este livro. Tem que ter mais ou menos 150, 200 páginas.

Blog Rock 80 Brasil – Mas são só acréscimos ou você está revendo o que já estava no livro?
Lobão – Estou colocando os 10 anos a mais e às vezes desdigo o que já falei. Por exemplo: uma confissão do Rock in Rio. Quando passei no Rock in Rio no primeiro livro eu fui muito blasé. Agora eu falo que foi um trauma, que foi uma coisa horrível na minha vida. Eu queria me destruir como imagem. E me destruí mesmo. Desconstruí a imagem do rock. Confesso que joguei todos os discos de rock fora, vendi minhas guitarras, comecei a tocar violão. Então, às vezes eu volto, eu deixo intacto o que está escrito e falo que não é nada daquilo. Ou que estava com medo de mostrar e tento mostrar no relato como confissão uma espécie de catarse psicanalítica, mesmo porque eu cresço muito me confessando. Às vezes, as pessoas dizem: “você é contraditório”. Você aprender a admitir seus erros publicamente foi o que me salvou. Escrevendo os livros, como o “Guia politicamente incorreto dos anos 80 pelo rock” eu me reconciliei com todo o rock, principalmente com o Herbert Vianna, que era um ódio que eu tinha.

Blog Rock 80 Brasil – Você chegou a encontrar com ele depois do livro?
Lobão – Sim. Agora estamos planejando fazer alguma coisa juntos. Ele disse que tem três surpresas pra mim e estou muito emocionado. Também com o Evandro Mesquita. Eu fiz um show com a Blitz tocando bateria na música “Mais uma de amor (Geme, geme)”. Estou felicíssimo neste sentido. Eu sei que fui muito lesivo com muitas pessoas e sei que elas têm todo direito de guardar algum ressentimento com a minha pessoa e acho isso muito natural. Mas eu acho que se eu fosse eles eu seria como eu agora e seria no mínimo mais pragmático. Por exemplo, a MPB começou a funcionar quando começou a se visitar. Nos festivais dos anos 60 havia uma briga. Tinha os oriundos da bossa nova, os tropicalistas, os mineiros e tinha a Jovem Guarda. Eles se detestavam, brigavam nos bastidores dos festivais. No final da década de 60 foram se exilando e no exílio começaram a se juntar e a se recomendarem. Isso revigorou a MPB. No sertanejo também ocorre isso. O rock não faz isso e peca por isso. Este disco foi feito num lampejo de tentar fazer um DVD no Morro da Urca, por exemplo, com todo mundo cantando, mas a reação foi bem mais fria na maioria dos casos que eu imaginava. Acho que poderia ser mais positivo, não para mim, mas para o rock. Nós estamos em um momento explodindo de criatividade. Na cena independente temos muitas bandas legais, então seria legal pegar este link, fortalecer o que já passou e pegar gente nova. Para mim, essa tentativa que foi uma tentativa frustrada, poderia continuar. A gente parou porque não teve respaldo. As pessoas não entram numa de se interligar, de fazer algo corporativo.

Fabricio Mazocco é jornalista, doutor em Ciência Política, professor universitário, fã de rock e criador do blog Rock 80 Brasil.