Foi para o blog Rock 80 Brasil que Humberto Gessinger adiantou que “em breve” lançaria algumas canções do seu último álbum “Não Vejo a Hora” com nova roupagem, um remix, uma “versão synth” (o nome não importa muito, né?!). O breve chegou e na última sexta-feira, 8 de outubro, Humberto lançou o primeiro de quatro remix (os outros serão lançados em 22/10, 19/11 e 17/12). Para cada remix, um artista diferente deixará sua marca.
As canções escolhidas no primeiro remix foram “Estranho Fetiche/Fetiche Estranho” e o músico que deixou sua assinatura foi Carlos Trilha, já conhecido da banda Legião Urbana, do trabalho solo de Renato Russo, e que Humberto conheceu quando ele participou da música “Alucinação”, de Belchior, que os Engenheiros do Hawaii gravaram no álbum “Minuano”.
Humberto escreveu sobre o remix em sua página do Instagram. Falou da pluralidade de estilos musicais que acompanha e da música eletrônica dos anos 70: “O gosto pela música eletrônica, principalmente em sua fase inicial, analógica, me acompanha desde a adolescência. Provavelmente a partir da admiração pelos tecladistas das bandas clássicas de rock progressivo que migrou para bandas que focavam nisso, como Kraftwerk, e artistas como Jean Michel Jarre e Vangelis”, escreveu ele.
O blog Rock 80 Brasil foi um pouco mais além e conversou com Humberto Gessinger e Carlos Trilha sobre a versão de “Estranho Fetiche/Fetiche Estranho”. Vale a pena conferir!
Rock 80 Brasil: Serão quatro singles. Por que a escolha do Carlos Trilha para “Estranho Fetiche/Fetiche Estranho”? Há um (ou mais) motivos na relação artista escolhido/remix?
Humberto Gessinger: Pesquisei junto com o pessoal da Deck alguns artistas que, além de talentosos e experientes neste tipo de sonoridade, entenderiam minha ideia. Achei bacana lançar esta canção como a primeira, pois, talvez, o Trilha seja o mais parecido comigo em termos geracionais e a gravação já dá o tom do projeto. Já tínhamos trabalhado juntos na regravação de Alucinação, clássico do Belchior que está no disco Minuano, de 97. Os lançamentos se espalharão pelas próximas semanas e optei por não divulgar quais serão as outras músicas e os outros parceiros pra manter um pouco o foco e não cair nesse liquidificador de informações que gira ao nosso redor.
Rock 80 Brasil: O projeto Água Gelo Vapor será um parênteses na sua carreira artística ou enxerga uma sequência?
Humberto Gessinger: Discos de remix geralmente são releituras de grandes sucessos visando as pistas. Não é o caso deste. Nem em forma, nem em conteúdo. Não são clássicos e o objetivo não é fazer ninguém tirar o pé do chão. Mas, se alguém o fizer, ficaremos felizes, é claro. Água Gelo Vapor é um spin-off do Não Vejo a Hora, um dos meus discos favoritos. A arquitetura deste álbum é baseada em dois trios: um power, outro acústico. Os shows com os dois trios se revezando no palco foi o melhor que já coloquei na estrada. Com a parada imposta pela pandemia e a distância das performances ao vivo, me pareceu interessante oferecer versões de algumas canções livres do formato original, num universo distante do meu, mas do qual sempre gostei: música eletrônica. Este termo, hoje, parece se referir a um tipo específico de música, expansiva, das raves, etc…, mas há várias abordagens para a música feita por synths. Ela já está muito longe de ser uma novidade. Pelo contrário, já pode soar vintage.
Sobre as consequências do projeto, por enquanto não pretendo levá-lo para a estrada. Vou retomar a tour Não Vejo a Hora de onde parei, com o power trio e, onde houver condições bacanas, com os dois trios. Por outro lado, já estou planejando outro spin-off que pretendo produzir em 2022 para lançar em 2023, no aniversário de 10 anos do inSULar. Pretendo regravar 4 canções do disco com 4 trios diferentes. Vai ser o caminho inverso: partindo de um disco com formações muito variadas e com muitos convidados indo para o universo trio.
Rock 80 Brasil: A voz foi a mesma da gravação original ou você a refez?
Humberto Gessinger: Sim, é a voz original. Das quatro músicas, só refiz a voz em uma, pois a base pedia algo mais falado, justamente no único remix que usou um pouco dos instrumentos originais. As outras 3 foram com a voz original e com o instrumental regravado. Acho que a graça do remix é um pouco esta: a partir de elementos já existentes e abrir as portas para outras abordagens. Por isso, não dei palpites além de um breve papo sobre a ideia geral do projeto.
Rock 80 Brasil: Em um “novo ritmo”, você acredita que a “Estranho Fetiche/Fetiche Estranho” ganha um novo olhar, inclusive na letra?
Humberto Gessinger: Pra quem escreveu a música, todo olhar é novo pois eu as conheço desde quando ainda eram apenas frases e acordes soltos no ar. Às vezes, um único dia, do show de sexta para o show de sábado, já me faz renovar este olhar. Quanto ao olhar do público, seria muita pretensão minha tentar decifrar qual seja. Todo artista longevo traz consigo as vantagens e as desvantagens de ser comparado com o que já fez e com o que pretendem que ele faça. Me acostumei a esperar ao menos dois anos do lançamento para levar mais a sério o que as pessoas falam.
Rock 80 Brasil: Como foi feito o convite para fazer o remix?
Carlos Trilha: O Rafael Ramos, diretor artístico da Deck, me procurou dizendo que tinha um convite inusitado: criar uma “versão synth” para duas canções do Humberto Gessinger que já haviam sido gravadas e lançadas em formato totalmente acústico. Eu trabalhei com o Humberto nos anos 1990 fazendo a programação da música “Alucinação”, do álbum Minuano (Engenheiros do Hawaii). Lembro que deu muito certo aquele encontro e este, portanto, não deveria ser diferente. Mesmo sem ouvir as novas músicas a serem trabalhadas, aceitei o convite.
Rock 80 Brasil: Quais orientações recebeu para fazer o trabalho?
Carlos Trilha: É sempre interessante, musicalmente falando, fazer esse tipo de transformação, mas a verdade é que nem sempre isso funciona, o que me deixou um pouco apreensivo com o compromisso. Fazer uma versão eletrônica das músicas, “Estranho Fetiche/ Fetiche” apresentaria ainda um desafio extra, pois, apesar de serem partes complementares de uma mesma obra, elas tinham andamentos e subdivisões diferentes. Além disso, a única exigência de Humberto é que eu usasse somente a voz da gravação original e que as duas canções deveriam ser unidas em uma só. Desafio aceito. Coloquei as canções lado a lado, descobri os andamentos, isolei as vozes e iniciei o processo de imaginar um novo universo ao redor delas, dentro do mundo encantado dos sintetizadores onde, sonoramente, tudo é possível. As ideias combinaram muito bem com a harmonia original da música, que pode ser mantida na íntegra.
Rock 80 Brasil: Quais influências “usou” para fazer a releitura?
Carlos Trilha: Para liberar a chave da criatividade me impus alguns limites tecnológicos, o que deixou o processo bastante divertido. A princípio eu poderia usar somente sintetizadores analógicos como o Minimoog (1972) e o Polysix (1981). Com o plano de voo na mão, iniciei a brincadeira. Para começar, tentei criar uma história a partir da dinâmica que a voz sugeria com um único timbre, que seria alterado em tempo real ao longo das duas músicas justapostas. Estava ali a espinha dorsal que conectava as duas músicas em uma só e a base do que seria a nova obra foi aparecendo, na minha opinião, uma das coisas mais legais que já fiz. Os sons foram surgindo e as ideias foram sendo registradas de forma artesanal, timbre por timbre, gerados em primeira mão. Camada por camada, foram aparecendo sons que carregam consigo alguma história, trazendo referências à tona, muitas que, certamente, eu e Humberto temos em comum, como Kraftwerk, Jarre, Vangelis e Pink Floyd. Tudo está ali, de alguma maneira, tragado e traduzido para servir às duas lindas canções.
Foi um desafio muito interessante reconstruir as músicas dentro dessa linguagem. O resultado é uma suite em dois movimentos com bastante dinâmica e pleno de texturas clássicas diversas que fazem parte da linguagem da Synth Music. Apesar das referências que se revelaram naturalmente, todos os timbres são originais, gravados em primeira geração, tocados do início ao fim sem edições. Os únicos sons que não são totalmente “feitos à mão” são o bumbo e a caixa 707 e a caixa 808 que aparecem em partes especiais. Para recriar a música, isolei a voz e comecei a imaginar novas texturas e sons. As ideias combinaram muito bem com a harmonia original da música, que pode ser mantida na íntegra.
Rock 80 Brasil: Falando em referência, senti uma pitada de “Time” do Pink Floyd.
Carlos Trilha: A ideia de citar “Time” surgiu por conta da letra que vem cheia de referências: cita “Dark Side of The Moon”. O conceito dos “zaps” e percussões eletrônicas do início veem desta influência. A virada de tons com reverbs longos é uma citação direta.
Rock 80 Brasil: Como foi fazer essa parceria com Humberto Gessinger?
Carlos Trilha: Fazer essa parceria foi uma honra. Mas não trabalhamos juntos. Eu tinha carta branca para fazer o que quisesse, as únicas exigências do Humberto foram que eu mantivesse a voz original e juntasse as duas canções em um track único. Espero trabalhar junto com ele algum dia, já que este trabalho deixou claro que temos muitas referências musicais em comum.
Confira os equipamentos usados por Carlos Trilha no remix “Estranho Fetiche/Fetiche Estranho”:
Analog Synths: Moog Model D (1972), Moog Opus 3 (1979), Roland RS-202 Strings (1979), Korg Polysix (1981), Roland JX-3P (1983),Roland Juno 106 (1984), Roland JX-8P (1985), Roland Alpha Juno-1 (1986).
Digital Synth: Roland D-50 (1987)
Digital Sampler: Roland S-760 (1991)
Virtual Synths: Logic’s ES-1, Logic’s Retrosynth, Logic’s Vintage E-Piano
Drum Machines: Roland TR-707 (1985), Univox (1973)
Gravado e editado em Logic X, mixado em console Solid State Logic (C-100)